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Hernandez e o lado sombrio do Paralelo 30

Envolvido em uma relação de amor e ódio, André Barbosa Hernandez Neto revela os mistérios escondidos da capital gaúcha


“Quando eu ando assim meio down. Vou pra Porto e, bah, tri legal. Coisas de magia, sei lá… Paralelo 30”

Trecho da canção “Deu pra ti”, interpretada e composta por Kleiton Alves Ramil e Kledir Alves Ramil.


Você já imaginou como seria a sensação de viajar no tempo e conhecer a história do lugar onde cresceu sob uma nova perspectiva? Localizada no místico Paralelo 30, a movimentada Porto Alegre — cenário para a música “Deu pra ti” da dupla Kleiton & Kledir — abriga um passado repleto de mistérios sombrios.


Lendas urbanas, crimes reais, “contos de não-fadas” e segredos enclausurados nas vielas da memória… quais são os fantasmas que assombram os caminhos do principal portão de entrada da capital dos gaúchos: o Centro Histórico?

Nascido em Porto Alegre, em 1981, André Barbosa Hernandez Neto se dedica à pesquisa e apuração das tramas desse lado oculto do Rio Grande do Sul. Sendo um dos idealizadores do projeto POA Mal Assombrada e do primeiro tour macabro da cidade, André ainda é músico, cantor, poeta, apresentador e publicitário.


“Ninguém quer olhar para a própria sombra”


Movido por um misto de paixão e curiosidade, o pesquisador compartilha suas misteriosas descobertas nas redes sociais e em semestrais “viagens pelo túnel do tempo”, proporcionadas pelas caminhadas que conduz no centro da capital.


Para além de explorar os limites entre o imaginário e o verídico, André Neto convida os gaúchos a olhar as mazelas de uma sociedade que ainda se espelha no século XIX. Entre os pontos de visitação presentes no itinerário do passeio, estão inclusas a antiga casa de Júlio de Castilhos, a polêmica Rua do Arvoredo, o castelinho do Alto da Bronze e o Largo da Forca.


“Tu viu que eu nunca olho para a foto, né? Gosto desse ar de mistério”, afirma o pesquisador André Neto, enquanto toma uma xícara de cappuccino no Café Mal Assombrado. Foto: De autoria própria.

“Tu viu que eu nunca olho para a foto, né? Gosto desse ar de mistério”, afirma o pesquisador André Neto, enquanto toma uma xícara de cappuccino no Café Mal Assombrado. Foto: De autoria própria.


Entrevistadora — Para começarmos, como é a sua relação com Porto Alegre?


André — Eu tenho uma relação de amor e ódio, de paixão. Eu amo essa cidade. Sou apaixonado. Ela tem uma dualidade, às vezes, é uma província demais para ser uma metrópole e, em outras, uma metrópole demais para ser uma província. […] Não sei, eu sou apaixonado por ela, mas a paixão é doentia, é patológica, né? Dizem que a paixão, na verdade, é o estado de demência da gente.


O que te levou a pesquisar sobre o passado da capital gaúcha?


Autoconhecimento. Entender a história da cidade é me entender. É entender meus parentes, minha família, as pessoas com quem eu lido, a forma como eu poderia me desenvolver na cidade também.


Por onde você fez essas pesquisas?


Eu fazia o que tu estás fazendo agora, entrevistava as pessoas. […] A curiosidade é crucial.

Além de ser um dos idealizadores do primeiro Tour Macabro de Porto Alegre, você ainda é o guia das caminhadas. Como surgiu o projeto?


Então, eu nem posso usar o nome de “guia” porque eu não sou um “guia”. Sou um monitor. Conduzo, faço palestras em movimento, contando a minha perspectiva sobre aquilo. O tempo todo eu estou colocando a minha opinião, o tempo todo eu estou trazendo o meu ponto de vista sobre as coisas que eu li. É a forma como eu interpreto.

Eu falo desde o início: “galera, duvidem de tudo que eu vou dizer aqui, porque é a minha perspectiva, é o prisma que eu decidi olhar”. Nem acredito exatamente em tudo que digo, mas eu gosto de acreditar. Saca? Tipo, eu gosto de acreditar no mistério.


Mas enfim, o projeto nasce por conta da banda. Sou vocalista da banda Lítera. A gente ia divulgar o terceiro disco, chamado “Arquétipos: Encontro com a Sombra”, a sombra psíquica. O conceito do álbum era muito hermético, né? […] Então, em 2019, criamos um evento no Facebook chamado “POA Mal Assombrada”. Só que o evento não ficou privado. Em 20 minutos, havia 1800 pessoas inscritas. Então cancelei, óbvio, porque não sabia o que eu ia fazer. Mas foi aí que nasceu.


O que é o “Paralelo 30” e quais mistérios ele esconde?


O Paralelo 30 é, literalmente, um paralelo mágico. Esse é o lance que me prende nessa cidade. O Paralelo 30 é um lugar que acumula muita energia, que não é nem boa nem má: é poderosa, tem uma força extraordinária. […]


Há segredos aqui, e é por isso que a gente tem um mosaico gigantesco de religiões, filosofias e teosofias. Por conta desse polo energético. Afinal, Porto Alegre é a sombra da linha que cruza as cidades sagradas no Norte — como Nepal, Egito — e as pirâmides dos Maias, no México. É o espelho das civilizações que prosperaram no passado.


Aproveitando que você comentou sobre a questão do tempo, em que período se acredita que tenham ocorrido essas histórias macabras de Porto Alegre?


A maioria no século XIX, que é um grande portal na humanidade. Eu acredito que toda religião, toda filosofia, toda teosofia, funcionou assim, em um período. Teve um portal que se abriu e naquele período ela funcionou. […]


Entre as histórias macabras, talvez uma das mais conhecidas seja a do Açougue de Carne Humana na Rua do Arvoredo. Quais são suas personagens?


São três personagens: José Ramos, Catarina Palsen e Carlos Claussner, o açougueiro que fazia a linguiça de carne humana para a aristocracia comer. Ramos era o único assassino ali. Catarina era cúmplice, sabia dos crimes e colaborou para que houvesse o anonimato necessário.


O que a gente não tem comprovado é se, de fato, foi feita a linguiça. Mas as mortes aconteceram. Há um inquérito oficial em cima disso. Segundo o Décio Freitas, um autor muito interessante nesse aspecto, o inquérito teria desaparecido por conta das pessoas envolvidas no caso.


Para mim, isso só melhora a história. Não saber se houve linguiça é pior. É como uma pessoa desaparecida, é pior que morte. Claro que a morte é horrível, mas o desaparecimento é pior. Com a morte se encerra um ciclo. Agora, o desaparecimento é eterno, não termina.


Muitas vezes se escuta que era Catarina quem atraía os homens e os levava para a casa, onde eles eram assassinados. Por que essa versão se popularizou?


Porque ela ganha esse chavão da ficção que é a “Femme Fatale”. É uma personagem que vende muito, o homem sempre se interessou por isso. […]


No caso da Catarina Palsen, temos dois caminhos: o primeiro, no sentido de que ela seria atrativa, e o segundo porque isso tiraria do José Ramos o peso de ter relações com os homens que se tornariam suas vítimas. Segundo a crônica, era a mulher que traía. O Ramos, em um surto de ciúmes, os matava. Hoje, a gente sabe que a Catarina mal falava português. Não só isso, mas ela teve um passado muito violento com homens. Todos os que passaram na vida dela a destruíram.


Ela não teria a capacidade de narrativa de seduzir. Não se tem argumentos para manter essa versão. Mesmo assim, coloca-se a culpa numa mulher. “Ela é prostituta”, então tudo que ela fizer agora não tem valor.


Tem alguma outra trama que retrata a figura feminina dessa forma?


Várias. Tem a Maria Degolada, tem a Noiva do Lago. Um destino comum para muitas mulheres imigrantes do final do século XIX, em Porto Alegre, era se tornarem garotas de programa. Afinal, dos males o menor. Pelo menos elas teriam um cafetão para protegê-las da violência.


Temos também vários casos clássicos de feminicídio, que, na época, eram tratados como crimes passionais. Chegava a estar na lei: se fosse em defesa da honra, o homem poderia matar a mulher. Era lei até os anos 80. Isso importava para a massa da sociedade, isso devolvia ao homem a razão.


O que mais essas e outras histórias macabras de Porto Alegre revelam sobre o contexto histórico e social da cidade, no século XIX?


Mostra uma sociedade extremamente patriarcal e machista. Ainda é, né? A gente sabe que não é todo o cidadão, mas, infelizmente, todos conhecemos alguém que é muito imbecil.

Também mostra um positivismo fortíssimo. A coisa mais legal do positivismo foi a arquitetura, sabe? Aliás, ainda temos a igreja positivista do lado da Redenção. É a única no mundo. O positivismo não existe mais nem no país que nasceu, na França. Lá, o positivismo morreu, mas aqui não. Aqui foi tão forte que influenciou a república. A bandeira brasileira é uma bandeira positivista. “Amor, ordem e progresso”. Tiraram o amor, tão simbólico, né? Ficou ordem e progresso. […]


Por que se escuta tão pouco sobre esse lado sombrio da cidade?

Ninguém quer olhar para própria sombra. Ninguém quer se reconhecer. Todos querem se colocar fora do balaio, mas eu não sei se tu, que tá aqui conversando comigo, não tem um cadáver guardado na geladeira. Se tu perguntar um por um, todo mundo fala que odeia a mentira, a inveja. Mas então, quem é que mente? Quem que é invejoso?


Por que conhecer essas histórias?


A sombra faz parte de quem somos. A luz não existe sem a sombra e vice-versa. Todos temos um lado sombrio. Charles Darwin já dizia, “existe um chacal adormecido dentro de cada um de nós”. Quanto mais negarmos que ele existe, maiores as chances de deixarmos essa porta aberta.


Teve uma vez que um menino de oito anos fez a caminhada, ele me perguntou “quando a luz se apaga, para onde a sombra vai? ”. Eu não soube responder. Será que essa sombra volta para dentro de nós? Platão dizia que “nós somos aquilo que acontece depois que se fecha a última porta”. Só somos nós mesmos ali, ninguém está nos vendo. Quando o silêncio se torna ensurdecedor.


Para finalizar, o que é verdade e o que é lenda nessas tramas?


Acredito que tudo é verdade. Afinal, uma história que conta sobre uma igreja amaldiçoada pode estar falando sobre escravidão. Outra, sobre um açougue de carne humana, pode falar sobre crise de sociedade, gênero, patologia criminal. Sempre tem um background que está falando sobre a sociedade. Se as pessoas vão considerar a tradição oral ou somente o que é documental, aí é com cada um. O documento também é feito por pessoas.


Luana Pazutti - link original

jornalista em formação pela ufrgs | em busca de novas formas de contar histórias

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