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Canibalismo revisitado: história de casal que vendia linguiça com a carne de suas vítimas inspira livro, filme e até café temático na Rua do Arvoredo

Romance 'Os canibais da Rua do Arvoredo' atualiza o caso gaúcho do século XIX, que ainda hoje divide historiadores


Para a maioria dos brasileiros, os nomes dos serial killers José Ramos e Catarina Palse não dizem muita coisa. Entre os moradores de Porto Alegre, porém, é sinônimo de morte, mistério e... consumo de carne humana. Desde o século XIX, os crimes reais do casal ganharam lugar de destaque no imaginário da cidade gaúcha, inspirando diversas obras de ficção e de não ficção, como o recém-lançado romance policial “Os canibais da Rua do Arvoredo” (Citadel), de Tailor Diniz.


A história, que completa 160 anos em 2024, não fica atrás de nenhum tema de true crime contemporâneo. Resumindo: Palse atraía imigrantes alemães afortunados para a casa. Ramos, seu cônjuge, os matava. Com a ajuda do açougueiro alemão Carlos Claussner, os corpos de suas vítimas eram transformados em linguiça. Sem que ninguém desconfiasse, a carne humana era vendida no comércio da Província de São Pedro, como era então chamada a antiga capital do Rio Grande do Sul.


Depois de ser desvendado pela polícia, o episódio rodou o mundo na época e foi parar até no caderno de anotações de Charles Darwin (“Existe um chacal adormecido em cada homem?”, perguntou-se o naturalista inglês). O jornal Le Temps, da França, tratou-o como “o maior crime da Terra”.


O romance de Diniz atualiza o caso, em tom de sátira surrealista. Um casal de universitários é assombrado pelos espíritos de Palse e Ramos, e passa a repetir seus atos sangrentos. Agora, porém, as vítimas não viram linguiça, mas hamburguer gourmet. Os protagonistas são seguidos numa tela de computador pelo narrador do livro, que diz pertencer a uma organização globalista. A trama será adaptada para o cinema pela produtora Accorde/Paris Filmes.


— Tentei trazer uma história absurda de um século e meio atrás para dialogar com os absurdos que temos hoje, nestes tempos de redes sociais — diz Diniz. — Trato delírios atuais como, por exemplo, as pessoas que acreditam que na vacina contra a covid é introduzido um chip através do qual a mente pode ser manipulada.


Memória macabra


Não é difícil traçar paralelos entre as duas épocas. Com a indústria do entretenimento cada vez mais viciada em crimes reais, o caso tem tudo para voltar a ficar famoso fora de Porto Alegre. Recentemente, porém, historiadores começaram a questionar aspectos mais sensacionalistas da história, como a comercialização de linguiças humanas. Muitos estranham o fato não aparecer nos inquéritos do processo, que condenou Ramos à prisão perpétua (ele negou os crimes até a sua morte, em 1893). Condenada por outros crimes, Palse foi libertada em 1891.


Desde então, a versão “oficial” do caso — com as linguiças — foi retratada em programas de radioteatro locais e ficcionalizada nos romances “Canibais” (2013), de David Coimbra, e “Cães da província” (1987), de Luiz Antonio de Assis Brasil. Também foi mote da série em áudio “A febre do Kuru”, com Cleo e Lucélia Santos, em 2021.


A memória coletiva ainda é assombrada pela Rua do Arvoredo, atual Fernando Machado, endereço da casa onde foram encontrados pertences de pessoas desaparecidas e pedaços mutilados de três vítimas. Entre elas estava Carlos Claussner, também assassinado pelo casal, que se apossou de seu açougue.


— Moro na Fernando Machado, e com certeza ela é hoje a rua mais mitológica da cidade, por conta desses acontecimentos — diz o compositor e escritor André Neto, o Hernandez, responsável pelo projeto cultural POA Mal-Assombrado, um walk tour pelo pontos mais aterrorizantes da capital gaúcha, incluindo a vizinhança do célebre casal (a antiga casa em que moravam já não está mais de pé).


Desde 2022, Hernandez e sua companheira Martina Mombelli também tocam o Café Mal-Assombrado, um estabelecimento temático que incorpora o imaginário do caso. No cardápio, iguarias como bolo de sangue e a Cuca do Claus, que vem com linguiça. Uma “homenagem” ao açougueiro Carlos Claussner.


— Muita gente acha a brincadeira de mau gosto — diz Hernandez, vencedor da última edição do reality Batalha dos Cozinheiros, produzido pela Discovery Networks. — O fato é que a cidade se sente desconfortável pelo fato de seus antepassados terem saboreado carne humana.


Canibalismo abafado


Algumas versões da história dizem que as linguiças de Claussner tinham “muito boa aceitação” entre os seus clientes, que pertenciam à elite porto-alegrense. Segundo o historiador Décio Freitas, autor do livro “O maior crime da terra”, de 1996, houve um pacto entre os poderosos da cidade para abafar a parte sobre carne humana, razão pela qual o fato não apareceria nos autos. Incompleto, o processo está hoje guardado no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro.


Para Tailor Diniz, existe atualmente uma rixa entre historiadores, dividindo os que acreditam em canibalismo e os que defendem se tratar de uma lenda urbana.


— A tese do Décio é bem verossímil — diz o autor. — Ele diz que a negação coletiva, seguida do esquecimento gradativo, foi a única saída da população da cidade para resolver psicologicamente o fato de terem praticado o canibalismo.



Serviço

‘Os canibais da Rua do Arvoredo’. Autor: Tailor Diniz. Editora: Citadel. Páginas: 208. Preço: R$ 66,90.


Por Bolívar Torres

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